Essa quem me contou foi o Gaspar, um canoense que conhece muitas histórias da cidade - e que bem poderia escrever um livro só sobre elas. Faria sucesso. A história é forte, tire as crianças da sala.
Voltemos a 1985. O recém-inaugurado Trensurb que cortou Canoas ao meio havia desapropriado muitos terrenos e chácaras da região para o progresso passar - entre eles, parte de um pedaço de terra que pertencia a uma velha senhora conhecida na redondeza como a “véia da vaca”. A alcunha é pouco polida, eu sei, mas preciso ser fiel aos fatos. Proprietária de uma simpática vaca malhada, a sisuda senhora cumpria um ritual de cuidados diários com o animal que começava ao amanhecer e terminava ao anoitecer. Mal o sol despontava no horizonte, lá estava ela, levando a vaca Mimosa para pastar no terreno perto dos trilhos do trem - que naquela época não eram totalmente isolados por muros de concreto. Antes que o sol caísse, lá estava ela, trazendo o animal para um lugar seguro perto de casa.
E assim passavam-se os dias; a vaca ia, pastava e voltava. Ia, pastava e voltava. Um dia, porém, a pobre Mimosa cometeu um erro grave que custou-lhe a vida: se aproximou demais dos trilhos e foi atropelada pelo trem. Morreu na hora, contaram as testemunhas. O barulho foi grande, mas o trem não parou, nem ao menos reduziu a velocidade - talvez porque trens não parem, ou porque havia um horário a cumprir.
Seu Valdir, um dos primeiros a passar pelo local voltando do trabalho de bicicleta, resolveu aproveitar a oportunidade. Desceu, sacou seu facão e retirou a perna da vaca depois de muitos golpes e muito sangue. Teve dificuldades, cabe registrar, tanto para esquartejar o animal quanto para amarrar o pernil na carona da bicicleta. Saiu sem culpa: não havia mais nada a ser feito, ela já estava morta. A notícia da morte da vaca se espalhou pela cidade e muitos vieram de longe para tirar um naco de carne. A cena era forte, havia dramaticidade e euforia.
No fim do dia, quando a dona da vaca voltou, pouco restava do animal esquartejado no chão; sua carne virou churrasco na Mathias Velho e imediações. Há quem diga que aquela noite será lembrada para sempre pelos moradores da região. Um cheiro forte de churrasco tomou conta da zona oeste da cidade enquanto a velha senhora chorava a morte do animal que lhe dava sustento. O luto de uns é o banquete de outros, dizia Valdir aos amigos em frente à churrasqueira improvisada no pátio de casa. Coincidência ou não, logo depois do ocorrido cercaram os trilhos do Trensurb com muros de concreto em todo o seu percurso, e nenhum atropelamento de animais de grande porte foi registrado desde então. Nenhum outro — pelo menos que o Gaspar tenha ficado sabendo.
Este site utiliza cookies para garantir a melhor experiência.