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O velho do saco



Há quem chame de terrorismo as práticas de pressão coercitiva usadas pelos pais para disciplinar os filhos nas décadas de 1960 e 1970. Terrorismo talvez seja uma palavra muito forte, mas é fato que a forma de educar mudou bastante desde então. Basta ouvir as canções de ninar que embalaram os berços daquelas preocupadas crianças, inclusive o meu. Boi da cara preta, pega essa criança que tem medo de careta. Nana nenê que a cuca vem pegar, papai foi pra roça, mamãe foi trabalhar. Quem consegue dormir tranquilo sabendo que os pais não estão em casa e que a cuca está vindo pegar?! Além das assustadoras, nossos pais também nos ofereceram histórias de tragédia, violência e maus tratos aos animais para que soubéssemos desde cedo que a vida não seria fácil. Atirava-se o pau nos pets e brigava-se até alguém ficar despedaçado. Assim era a vida. Sobrevivemos. Com alguns pequenos traumas, é bem verdade, mas com boa capacidade de resiliência. Causar medo era uma estratégia eficiente, lançava-se mão da pedagogia do susto sem muita parcimônia. Quando os argumentos não surtiam efeito e a desobediência atingia níveis incômodos, a ameaça era o remédio: vou chamar o velho do saco. 

 

Havia um autêntico velho do saco que frequentava a praça Florida onde eu brincava na primeira infância. Um sem teto andarilho envelhecido pela vida dura, muito magro e quase  totalmente careca - lembro que lhe restava apenas alguns poucos cabelos brancos. Carregava nas costas um grande saco de linhagem com seus pertences, e costumava puxar conversa com as crianças desacompanhadas. Eu tinha muito medo dele, achava que caberia fácil dentro daquele saco e até imaginava uma criança amordaçada lá dentro. O medo fazia sentido: além da aparência intimidadora, corria o boato de que ele levava as crianças para casa e as transformava em sabão.

 

Um belo dia, o velho do saco sumiu, e meu tio mais espirituoso se encarregou de preencher seu desaparecimento com uma história assustadora. Contou que ele havia aparecido boiando no rio Guaíba. Fiquei impressionado, mas aliviado. Quem havia feito aquilo? Possivelmente o pai de alguma criança levada por ele, pensei. A imagem do velho boiando no rio me acompanhou por anos, sempre que cruzava a ponte do Guaíba, procurava por ele ou pelo saco, mas nunca tive o desprazer de vê-los.

 

Essa figura lendária habitou o imaginário infantil da minha geração, prestou um grande serviço aos educadores da época, e há quem diga que ainda serve aos pais que não se importam em causar medo em troca de obediência. Hoje já não temos medo dele, mas algo daquela experiência ainda persiste em nós, como um fantasma à espera de um vacilo. Bom ou ruim? Não sei, gosto da ideia de que nada é só bom e nada é só ruim. É apenas uma utopia, reconheço. Imagino que o velho do saco não concordaria comigo.

 

 

 

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