A gente só começa a sentir que é cronista de verdade quando alguém nos pede para escrever sobre um comportamento social intrigante ou sobre uma das muitas contradições que habitam nossas mentes. Dá uma certa satisfação quando isso acontece, confesso. Nada melhor do que ser convidado a transitar por áreas do conhecimento humano sem ser especialista em nenhuma delas. Da psicologia, o cronista toma o gosto por espiar os sentimentos escondidos. Da sociologia, vem a mania de analisar o comportamento das pessoas para que possa ser registrado com humor e certa ternura pelo ridículo coletivo. Da antropologia, ele rouba o olhar para os rituais cotidianos como se fossem de uma tribo exótica. Às vezes, tudo que o leitor quer, é ouvir o ponto de vista de um curioso profissional que trate o assunto com leveza literária e que transforme tudo em uma boa história.
Esses dias, me pediram para escrever sobre o último pedaço de pizza, aquele que (quase) ninguém pega quando estamos num encontro social. Poderia ser também sobre o último bolinho de bacalhau, não importa. Trata-se de uma questão de etiqueta com força suficiente para travar comportamentos impulsivos e fazer aflorar conflitos internos incômodos. Convenhamos, disse a pessoa que encomendou a crônica, esse tema é instigante. É verdade, concordei.
A primeira coisa que me ocorre, é que esse comportamento não costuma se manifestar quando estamos em família ou na companhia de pessoas com as quais temos muita intimidade. Nessas ocasiões, dê-se por satisfeito se o esfomeado procurar por possíveis interessados antes de avançar no último bocado. Alguns apelam para a empatia ou compaixão, justificam o ato com o argumento de que não é certo desperdiçar comida enquanto tanta gente passa fome no mundo, como se aquele pedaço pudesse ajudar alguém. De qualquer forma, sempre vale a pena lançar mão de algum artifício para limpar a consciência.
Por que (quase) ninguém pega o último pedaço da pizza? É uma questão de educação, mesmo que exista uma teia delicada de razões invisíveis associadas. Ele está lá, na caixa, sorrindo, discreto, enquanto muitos fingem que não o veem. O desejo ardente pulsa, mas os motivos para não avançar falam mais alto. São vários, e carregam uma mistura de altruísmo, orgulho, vergonha ou medo de parecer egoísta. Esse é o momento de exercer a paciência, de ser heroicamente humilde.
Existem algumas maneiras de subverter essa convenção social sem prejuízo definitivo da imagem de quem a subverte. Uma delas é cortar uma lasca do pedaço alegando o desejo de experimentar aquele sabor. É válida, ninguém questionará, mesmo que você já tenha experimentado aquele sabor. Abre-se, então, a oportunidade para que um segundo integrante do grupo tire também sua lasca usando o mesmo argumento, e assim por diante, até que o tamanho do pedaço se torne tão pequeno, que o constrangimento por deixá-lo torna-se insuportável. Outra alternativa é reivindicar o pedaço para o cachorro, desde que você tenha cachorro, claro. Comerá frio ou requentado em casa, mas não será desperdiçado.
A questão parece nunca se resolver. No final, o último pedaço quase sempre fica lá, triunfante, esperando que alguém tenha coragem ou frieza suficiente para conquistá-lo. Instala-se uma batalha silenciosa entre o desejo e a disciplina até que alguém retire os pratos. A propósito: eu não tenho cachorro, mas gosto muito de pizza fria.
Este site utiliza cookies para garantir a melhor experiência.